Quantcast
Channel: Caótico » Paulo Bezerra
Viewing all articles
Browse latest Browse all 3

Dois sonhos

$
0
0

Em plena cobertura da Copa do Mundo de 1990 pela TV Manchete, o ex-treinador e comentarista João Saldanha encerrou assim uma discussão sobre a possibilidade de Romário jogar mesmo sem estar sem estar em ótimas condições físicas: “Romário, com uma perna amputada, joga mais do que esses pernas de pau todos dessa Copa”. E pronto, foram revogadas todas as disposições em contrário.

O que Saldanha disse de Romário, repito para Fiodor Dostoievski. As coisas menos importantes que o barbudo escreveu há 150 anos são muito melhores, densas, complexas ou mais divertidas do que a maior parte das edições de luxo dos pernas de pau que merecem prêmios, espaço na mídia e massivas campanhas promocionais. Na literatura, Dostô, como o chama na intimidade o blogueiro gaúcho Milton Ribeiro, é mais do que um Romário. É Pelé, Messi, Garrincha juntos.

Os dois volumes de novelas anteriores ao período dos grandes romances, com novas traduções diretas do russo, lançados no final de 2012, são indispensáveis para quem já conhece sua obra e uma excelente “porta de entrada” para aqueles que, por falta de conhecimento ou hábito, temem encarar a leitura de Dostoievski.

Os dois lançamentos são A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes e Dois sonhos, que inclui a novela O sonho de titio e uma espécie de crônica, ou folhetim de acordo com a tradução de Paulo Bezerra, intitulada Sonhos de Petersburgo em verso e prosa. Não li a nova edição da primeira novela, mas sim em uma edição de 2001 da editora Nova Alexandria, tradução da senhora Klara Gournikova.

O sonho de titio é um escracho. A comédia é a ferramenta do escritor para expor a decadência acelerada da aristocracia russa em sua época. Os personagens principais são um velho príncipe completamente gagá e Maria Alieksandróvna, a maior fofoqueira da cidade de Mordássov, quiçá do mundo. Maria quer porque quer casar sua filha, a bonitona Zina com o príncipe, mesmo contra a vontade da moça.

Zina é a única personagem decente e nobre da trama cheia de quiproquós, mas acaba jogando o jogo do jeito que ele é jogado. Dostoievski é implacável. É provável que sua capacidade de observação dos seus contemporâneos tenha determinado essa característica.

Essa personagem protagoniza uma sequência de intensamente dramática, a agonia e morte do rapaz por quem era apaixonado, o que quebra completamente o ritmo da novela ao intercalar drama logo após os trechos mais engraçados da comédia. Ser capaz de articular gêneros narrativos tão diferentes é coisa para gênio. Retomando à metáfora futebolística dos primeiros parágrafos, é como se o craque resolvesse cadenciar o jogo após uma série de dribles humilhantes.

O príncipe, por sua vez, está o tempo todo entre a demência, a mentira e a megalomania. De acordo com o posfácio de Paulo Bezerra, O sonho de titio nasceu junto de A aldeia de Stepántchikovo,  mas Dostoievski resolveu separar as duas histórias porque estava tendo dificuldades de fazê-las convivê-las numa narrativa única. O diálogo entre as duas histórias é perceptível quando recordo-me que, em A aldeia, o protagonista é Fumá Fomitch, um agregado mesquinho e intrigante que manipula um nobre influenciável.

Os leitores mais acostumados aos romances de Dostoievski perceberão embriões de vários dos suas obras-primas. A morte do grande amor de Zina, Vássia, de tuberculose, parece ser um ensaio para a morte de Katerina, mãe de Sônia, em Crime e Castigo. Mais adiante, o trecho que transcrevo abaixo reaperece de maneira muito semelhante em Os demônios:

“Como a alta calçada de madeira era estreita para duas pessoas que caminhassem lado a lado e Zina não se desviava, Pável Alieksádrovitch pulara da calçada e corria ao lado dela ladeira abaixo, olhando sem cessar para seu rosto”.

O mais importante é que não é apenas a linguagem ou a estética dos grandes romances escritos nas duas décadas seguintes, já presentes nas novelas curtas. A inquietação do escritor diante das repercussões no ser humano das grandes mudanças econômicas e sociais em curso na Rússia do século XIX é a principal “marca” de Dostoievski nesses escritos mais breves.

Para encerrar, também vale muito a pena a crônica/folhetim sobre a vida intelectual de São Petersburgo, foco do texto que completa o volume e escrita para uma revista editada pelo seu irmão Mikhail. O leitor do século XXI, um pouco mais crítico e insatisfeito com as futilidades e repetições de jornais, revistas, portais na internet, irá identiticar em Dostoievski um porta-voz quando ele diz “o mais lamentável é que eles de fato imaginam que se trata de novidades. A gente pega um jornal, não tem vontade de ler: em toda parte é a mesma coisa…”

Agora, se você preferir um e-book, os links são estes aí:


Viewing all articles
Browse latest Browse all 3

Latest Images





Latest Images